sábado, 5 de abril de 2014

Foi esta tarde, na Casa d'Avenida, que José Kaiseler inaugurou a exposição No café da Ribeira e outras histórias... Com Pedro Fragoso, Zé Pedro e Duarte a dar música. Foi muito bom.








O Dinheiro
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
                            Tlim!
                            Papo.

E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
                            Tlim!
                            Pronta.

Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
                            Tlim!
                            Ora...

Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
— Oh, meu tão antigo amigo!
                            (Tlim!)
                            Pois não!


João de Deus, in 'Campo de Flores'

"O frasco que te dei tem dentro suco de anémonas e suco de plantas mágicas. Se beberes agora este filtro passarás a ser como a Menina do Mar. Poderás viver dentro da água como os peixes e fora da água como os homens." Sophia de Mello Breyner Andresen

"De que me serve a máscara se o próprio rosto se oculta atrás da luz?" José Jorge Letria


E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem luas.

Só nas minhas mãos
ouço a música das tuas.


Sem ti, Eugénio de Andrade






Toda a vida acreditei:
amor é os dois se duplicarem em Um
Mas hoje sinto: ser um é ainda muito.
De mais.
Ambiciono, sim, ser o múltiplo de nada,
Ninguém no plural.

- Ninguéns.
Mia Couto




Poema à Mãe


No mais fundo de ti,

eu  sei que traí, mãe.

Tudo porque já não sou


o retrato adormecido

no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras


que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo


são duras duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,


talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;


esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me? –


às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração


rosas tão brancas

como as que tens na moldura;

ainda ouço a tua voz:


     Era uma vez uma princesa 

     No meio de um laranjal...

Mas – tu sabes – a noite é enorme,


e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.


Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.

Os Amantes sem Dinheiro (1950), Eugénio de Andrade



O Sonho

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo Sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.

Sebastião da Gama


Creio que foi o sorriso, 
o sorriso foi quem abriu a porta. 


Era um sorriso com muita luz 

lá dentro, apetecia 

entrar nele, tirar a roupa, ficar 
nu dentro daquele sorriso. 
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

O sorriso, Eugénio de Andrade






Vaidosa

Dizem que tu és pura como um lírio 


E mais fria e insensível que o granito, 

E que eu que passo aí por favorito 

Vivo louco de dor e de martírio. 

Contam que tens um modo altivo e sério, 
Que és muito desdenhosa e presumida, 
E que o maior prazer da tua vida, 
Seria acompanhar-me ao cemitério. 

Chamam-te a bela imperatriz das fátuas, 
A déspota, a fatal, o figurino, 
E afirmam que és um molde alabastrino, 
E não tens coração, como as estátuas. 

E narram o cruel martirológio 
Dos que são teus, ó corpo sem defeito, 
E julgam que é monótono o teu peito 
Como o bater cadente dum relógio. 

Porém eu sei que tu, que como um ópio 
Me matas, me desvairas e adormeces, 
És tão loura e dourada como as messes 

E possuis muito amor... muito amor-próprio. 

Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'



Que fazes por aqui, ó gato?
Que ambiguidade vens explorar?
Senhor de ti, avanças, cauto,
meio agastado e sempre a disfarçar
o que afinal não tens e eu te empresto,
ó gato, pesadelo lento e lesto,
fofo no pelo, frio no olhar!

De que obscura força és a morada?
Qual o crime de que foste testemunha?
Que deus te deu a repentina unha
que rubrica esta mão, aquela cara?
Gato, cúmplice de um medo
ainda sem palavras, sem enredos,
quem somos nós, teus donos ou teus servos?


Gato, Alexandre O'Neill



O fogo do sorriso


continua a sorrir
pode ser que desponte
também uma fogueira
nos meus lábios
mas fá-lo discretamente
não quero que te prendam
por incendiária.


Anthero Monteiro


Em teu macio olhar repousa o meu
E na face polida assim formada
Se reflecte e cria o próprio céu.

Daniel Felix


































Adamastor

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