sábado, 17 de maio de 2014

VAGUEAR 

Graça Pinto Basto, ilustração, desenho e pintura,

Maria João Frade, texto

Casa d'Avenida

 ATRACAGENS

A viagem começa, algures no Alasca, imersa em brancos de neve e gelo, com um frio de rachar.
A minha cabeça está doida por sair à procura, à procura de gente, quente, terra castanha e verde, árvores que dão sombra por causa do sol, cabeças pintadas com fitas e turbantes, cores a escorrer, noites de verão ao relento, a transbordar, perfumes de correr mundo, histórias de vida para me alimentar.

Na minha cabeça doida por sair, as palavras criam roteiros que nunca conheci, sugerem-me que as siga por atalhos e ruas estreitas que a imensidão do branco esconde, mas que eu sei que existem. É só preciso dar voz à água, ouvir a música do porto, deixar-me embriagar e embarcar.


Já cá estou. O branco ficou para trás e já não brilha. Dei o salto e com este primeiro passo embarquei na solidão das perguntas que perguntei.
Vou por mar entre terra e céu, à procura. Não olho para trás. Vou sem destino à procura. O branco tornou-me sensível à luz e à lua. Subo à proa e suplico que soltem as amarras. O vento enfuna o barco, o mar não está para rosas. À minha volta há sombra, tinta, eco e a melodia oculta do bater do coração. Levanto-me no meio do mar cavado e o meu canto é imenso:
- Vou para onde? Para onde vou eu?
Para onde o vento, o mar, a vontade de quem manda me mandar. E, pela primeira vez, enfim, a minha cabeça doida por sair à procura, se espanta, se acalma, se amedronta e sossega, no corpo e no barco onde o destino me procura.

 Conta-se que foi assim que ele iniciou a sua viagem. Dele apenas se sabe que era magro, ainda que estranhamente forte, com temperamento apaixonado, sonhador, intrépido e aventureiro. Um pouco céptico e descrente. Cuidadoso na fala e exímio observador.
Também se diz que gostava de papel e lápis, tendo deixado alguns apontamentos e esboços de cartografar.
O que se pode ler nestas páginas é um pouco da sua viagem. Não há registo do que aconteceu no mar... mas ficou marcado em terra firme o feito de cada atracagem.
Carlos Eufémia, escultor , e Lurdes Sendas, pintora, artistas residentes da Casa d'Avenida :)

As noites tinham sido ocupadas a olhar as estrelas. Peixes, Touro, Pégaso, Cisne, Cassiopeia. Tantas outras criações de mundos, na rivalidade entre deuses e diabos, abrindo fendas no céu e desafiando os monstros do caos.
Uma dessas noites, num céu cortado ao meio por um rio de prata que me enchia os olhos de bem-aventurança, pareceu-me ver um sinal. Rente à água, num baile de roda, o barco movia-se por entre estrelas vivas e brilhantes que me toldavam a razão...

Sem pensar, dancei e dei por mim, figura de proa, a avançar pela areia fina da ilha que, no breve amanhecer, me deu honras de fidalguia.
Foi a primeira manhã em terra firma, recebido com risos e carícias.
Vi-me rodeado pelo azul-cobalto do mar e pelos verdes de Gauguin que, numa alquimia de tons e visões me transportaram para um dos paraísos em terra, escolhido por poetas cantores, cientistas e descobridores, para seu e nosso deleite.

Tudo era silêncio e neblina. Rochas de lava, numa minúscula enseada, guardiões imponentes de um território a preservar. Nunca tinha sentido tanto mistério num cenário tão desolador. Os rochedos desafiavam-me a vontade de explorar. Ir à procura. Na minha cabeça coexistiam temor e ousadia.

De repente deixei de me sentir tão solitário como nos primeiros minutos em que o peso da paisagem me pesava...
Dissipado o nevoeiro que se afastava milagrosamente, vi-me rodeado por dragões de lenda, de tamanho considerável, que, aos meus ouvidos, pareceu balbuciarem sons de família.

E, com efeito, logo depois das primeiras notas, as rochas inóspitas cobriram-se de seres fantásticos, tartarugas gigantes, lagartos de terra e do mar, todos eles olhando-me de forma amistosa e, pensei eu na altura, sobretudo curiosa. Todo eu fervilhava como as águas que tinha deixado para trás. O percurso que ia fazendo não deixava tempo nem alternativa, confundindo emoção com razão.


À minha frente, à minha volta, embrenhando-se na folhagem ou refrescando-se nos rios vermelhos que serpenteavam a terra, conviviam leões-marinhos, flamingos, pequenas iguanas de sorriso esfíngico.
Um sopro e um bater de asas: pinguim.
Um grito e um voo picado: falcão.
Um som de madeiras que se tocam: albatrozes no acasalamento.
Estava-me a ser oferecido um novo entendimento da vida neste misterioso mundo pré-histórico em que a fé de Darwin se revelava diante dos meus olhos em toda a sua crueza e esplendor.

Desci com pressa. O cais estava cheio. Caixas, sacos, alguidares, bichos, gente, gente, um mar de gente com pressa de chegar e partir. 
Respirei fundo. Engoli o calor da noite, rocei corpos suados, no calor das vozes, do som, do ritmo da música.
Música no coração, na cor, nas ruas, nas casas. Nas roupas e nos sorrisos. Portas abertas, casas abertas. Gente dentro, gente fora, na vida da noite. Embriaguez na noite que nos aquece o coração, nos enrola o corpo, nos embala a cabeça. Nos desperta, adormecendo-nos. Suavizando-nos os sentidos. Chamando-nos para um mundo novo. Luminoso na noite iluminada, também pelas vozes, pelos gestos de quem chega e de quem parte, com saudade na voz e no corpo.

O cais continuava cheio nas primeiras horas da manhã, na primeira luz que me abriu os olhos, desta vez outros, para o mesmo cais repleto de caixas, as mesmas ou outras. Caixas e cordas, cabos e sacos, bichos e gente.
Terra oferecida como prenda, e o mar a chamar de novo a ousadia de viajar. Ou ficar.

Ainda sem perceber bem o que tinha acontecido, pressenti uma atracagem em rota desviada...
O barco tinha resistido e flutuava, ainda que seriamente danificado. Com muito esforço e ajuda do vento que entretanto se levantara, aproximámo-nos de terra.
O que parecera o recorte de uma ilha em rocha esculpida era apenas o contorno da montanha que descia do vulcão para as margens. Da ilha. Uma ilha silenciosa e imóvel. À espera. Saltei para terra. Pisei chão.
A sombra das escarpas recortadas desenha estátuas inventadas. Não ouso falar, não ouso chorar, não ouso.

Avanço por terra, por cinza, por chão entre o vulcão e o mar. Vejo nuvens no cima da montanha onde as aves fazem os ninhos assustadas com a cor do fogo.
A ilha continua em silêncio. Espera pelos deuses que, em segredo, a alimentam. Continuo a andar. Olho para trás antes de começar a subir. Da água emergem mastros e velas que escondem a enseada. São os barcos no fundo. Como a ilha, esperam que os venham libertar. Deito-me no chão, encosto-me ao vulcão. Sinto o fogo que corre debaixo da terra, a dor, o temor daquilo que não sei e não conheço. Deitado no chão em fogo, sinto o recomeço.


Já saí há tanto tempo... Já vivi tanto mar... Na minha cabeça as imagens misturam-se com o que procurei e o que me foi dado nesta viagem que desejei e me tem revelado um pouco do que me poderá salvar. Nenhuma coisa é simples. Na minha margem de liberdade, a esxcolha agora é ficar ou recomeçar.


Toda a viagem repete o mito da origem. Eu queria explorar, queria saber, queria talvez encontrar uma razão para viver. Não se sabe ao certo até onde foi, nem isso importa.
A última atracagem na ilha do vulcão produzira nele um efeito apaziguador.
Dormira sonos profundos e quentes, que lhe tinham enchido a mente de imagens de bem-estar.
Sentia-se forte, capaz de temeridades...
Ouvira repetidamente a voz das ondas que lhe falava de amigos e de amores.


Uma manhã acordou, achou-se outro homem e, descendo da montanha até à praia, sentiu-se novamente atraído pelo mar. Tinha estado ausente, viajando com o mundo na memória. Desenhara mapas, escrevera pedaços de aventuras em pedaços de papel.
Tinha passado tempo... Estava mais velho mas igualmente determinado.
A viagem não acabava ali.
Não é fácil arranjar razão válida para esta vontade de partir. Mas também de voltar. Uma coisa é certa, porém... onde ainda não foi homem algum, algum homem, mais cedo ou mais tarde, tentará chegar. E os homens não mudam assim...


Nessa manhã em que, bem acordado, se aproximou da água, na praia, olhou longe onde se "cala a voz e há só o mar" e estranhou o piar dos pássaros... Um sol inclemente e rajadas de vento súbitas prenunciavam uma estranha tempestade. A intempérie durou poucos instantes. Uma luz saiu da água que brilhava e o mar muito tranquilo enrolou-se-lhe nas pernas.
Diz-se que foi visto por várias vezes brincando na água, abraçado a uma mulher que, na areia, se via ao espelho nas noites de luar.







Carlos Pereira da Silva, Acácio Malhador e Carlos Eufémia







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